O chão crocante da sala de estar de Pepe denuncia um caminhar lento e seguro. Das botas de vaqueiro guisam esporas e o cheiro a suor no espaço vai alinhado directamente para o nariz de John “El Juanito”, português que emigrou em busca de melhores condições de vida.
– Juanito, Welcome to Tijuana. – Diz Pepe num atropelo hispânico a fazer soar Hollywood.
Passa junto à mesa onde Juanito aguarda tenso pelo almoço que será servido dentro de momentos. O vaqueiro vai e vem da cozinha para mesa, trazendo entranhado na roupa o cheiro intenso a pimentos habaneros e a certeza que o nó dado nos pés do convidado resiste e o mantém sentado, vendado com uma tira grossa de cabedal seco que fere as bochechas e sobrancelhas.
Quando se está vendado a ouvir Pepe, é normal imaginar que tenha um bigode farto que tapa a boca por completo ou uma paralisia na cara. Fala enrolado pela tequilla, bebida à descrição em bar aberto de desconfianças e saturação. Não é novo neste esquema, não vacila, não perdoa.
– Prepara-te para comer. Bom proveito. – Diz Pepe.
Coloca o prato à frente do esfomeado “El Juanito”. Este lambuza-se no picante com a mesma alegria com que se carregam as espingardas com pólvora. Dispara o apetite sôfrego sobre a iguaria com bestialidade. Fome a sério.
Entra em cena Lupe, mulher de Pepe. Chega a cavalgar a sala com os seus sapatos de tacão, em passo de corrida até junto de Juanito, desferindo uma valente chapada na face cegada pela venda. E diz:
– Porco! Que maneiras são essas? Julgavas que era chegar aqui com falinhas mansas de gringo e já estava? É! Não sabes ler?
Lupe segreda ao ouvido de Juanito que este só não vai dormir com os peixes porque o poço das traseiras só tem água e já é pouca. Os arrepios seguem a alta velocidade pela auto-estrada nervosa da vitima, até alojarem-se numa náusea incontrolável que ele sente num esófago a latejar. Viu o medo com os olhos vendados.
John “El Juanito” pensava em miúdo como seria a morte. Agora, ali sentado, pensa como será a cara de Lupe e por onde andará Pepe que nada diz.
Respira fundo a intuir o que se vai passar a seguir.
Cheira novamente a Pepe. Suor destilado a álcool. Pega no braço de Juanito com unhas que parecem quebra-nozes e atira-o com violência para o chão. Saca da faca de mato para cortar a corda que juntava os pés do condenado e encaminha-o para a rua.
O cantar das cigarras vela uma tarde tórrida e o pó laranja enche a boca de Juanito. Caminham cerca de 50 passos, sempre em frente sem mudanças de direcção. Param. Pepe pede a Juanito que se ajoelhe e reze.
– Gringo, não sabes ler? Não viste escrito na porta que não queremos TV por cabo? Ignoras a tranquilidade deste lar para vender uma coisa que não queremos comprar? Achas normal? Isso é ser pró-activo, é?
Juanito começa a ouvir passos na areia. Chegam pessoas às dezenas até ao local da sua suposta morte. Pepe tira-lhe a venda e a luz entra rápida para os olhos feridos pela claridade. Demora até conseguir focar a cena seguinte.
Vê toda a equipa executiva da empresa que o havia contratado ontem mesmo para vender pacotes de televisão, internet e telefone, alinhada e de mãos dadas numa zona inóspita e dura no México profundo.
O director larga as mãos, avança e estende-lhe a mão direita para o levantar dizendo:
– Seja bem vindo John. O recrutamento não é da nossa competência, mas gostamos de saber com quem trabalhamos. Quer mesmo ficar connosco?
– Sim!! – Grita John como se estivesse a falar com Deus.
Trabalhar para empresas de telecomunicações porta a porta não é para meninos.
Juanito parece agora um pregador da palavra do Senhor. Já conseguiu converter 507 casas ao pacote Premium e é respeitado por ter conseguido passar o teste dos gringos sem chorar.
Pepe e Lupe colaboram com a empresa desde sempre.
terça feira sem olhos vendados vais conseguir.
Excelentes textos, muitos parabéns!
Numa escrita, extremamente, ágil, deliciosa e convidativa…
Será uma honra acompanhar os seus textos.
Um abraço,
Carla Pais
Muito Obrigado Carla!
A sua opinião conta. Já li parte dos seus textos e não fiquei indiferente.
Escreva muito.