DESAPARECIDO

Num registo melodramático, eu estaria no meio de um massivo bombardeamento numa praia da Normandia esperando que os anjos do Éden me levassem; ou, sobrevivendo, olhar longamente para a tua foto naquele vestidinho vermelho que eu tanto adoro e poder levantar subitamente o fuzil sem cortar o queixo na baioneta e continuar a combater só para te ver novamente naquele traje dos passeios pela praia aos Domingos a ver as ondas a rebentar no pontão.

Nem te vais acreditar. Ainda hoje no meu trabalho como empregado de balcão, na força que faço para te manter viva na ideia, para te ir amando como posso, enquanto mergulhava chávenas sujas de café e respectivo açúcar caramelizado e preso ao fundo, com os pires que as sustentam todos babados pelas colheres mal lambidas que poisam naquela loiça redondinha e lisa e branca e pura, que eu próprio, já imaginando estar vestido: fato de mergulho, botija e máscara – mergulhava naquela negrura de água suja num velho alguidar azul escuro com cheiro a água de café, e de repente, o nível da água da tua banheira começaria a subir e a subir cada vez mais, e tu, na salinha, aborrecida com a Internet, uma mantinha castanha nas pernas, a olhares de quando em vez para a janela à espera que uma gaivota quebrasse a rotina das antenas a baloiçarem num dia ventoso; começas a sentir o doce aroma a café. Sais lançada para a cozinha, não te lembras de ter utilizado a máquina de café e imaginas estar a enlouquecer com saudades minhas; ouves borbulhar na casa de banho e ficas assustada. Persegues um som com a incompreensão do teu faro.

Abres a porta e eu já estou a despir o fato de mergulho a custo. Beijo-te longamente e pelo braço, puxo-te numa chicotada macia até à nossa cama onde te prendo num abraço tentacular que te esgota a respiração num suspiro libertador. Todo eu sou café, açúcar e notas de cafeína coladas aos nossos movimentos de amantes em valsa.

– Oh chefe! – Foi assim que um cliente me roubou à cama quente e revolta e nos interrompeu.

– Quero um café duplo, bem cheio, em chávena escaldada, mas bem quente! Quanto é? – Já viste, meu amor, nem sabes a quantidade de vezes que me acordam de sonhos contigo.

Naquele entra e sai típico dos restaurante de praia, num dado período de tempo, abandonaram todos a sala e fico novamente sozinho com o zumbido da máquina para fazer cubos de gelo e da arca dos gelados que assemelham-se em tudo a um gigantesco enxame de abelhas lindas como o amarelo dos malmequeres quando o sol dá nos prados em tardes de Primavera; agora tu és uma abelha que se liberta do grupo para beijar o gargalo de uma garrafa de Coca-Cola e cais acidentalmente lá para dentro. A tua visão turva e as bolhinhas de gás sufocam-te numa luta desigual fechada em ambientes hostis. Pobre amor! Pobre destino cruel!

Vejo-te aflita, inclino a garrafa e espera-te uma colher de chá para amparar a queda e separar-te do liquido viscoso e maléfico. Pego num borrifador com água e dou-te banho à pressão; seco-te no calor do topo das máquinas de café onde as chávenas cochicham todo o santo dia. Levo-te até lá fora no equilíbrio próprio das colherezinhas de chá, e tu, incrédula com a minha bravura e benevolência, apaixonaste por um ser humano e decides, como é normal, dar-me uma valente ferroada que me marca e faz gritar.

Um cliente, sábio, aproveita-se e pede um Iced Tea de manga com muito, muito gelo; eu aproveito e coloco um cubo para aliviar a dor que a tua paixão me fez.

Farto de te ver só em pensamento, corro para o escritório do chefe, tiro uma foto com o telemóvel, imprimo-a à pressa com um letreiro por cima a dizer “DESAPARECIDO”; nem me importei com o ângulo da foto em que revelo as entradas e um ou dois cortes da barba feita à pressa. Pego na folha A4 já impressa a preto e branco e na fita cola.

Largo-me a correr em direcção ao mar que me espera salgado; mergulho a toda a velocidade e vou dizendo olá e adeus a peixes e medusas e golfinhos que não me esperavam de todo naquele registo. Venho finalmente à tona uns minutos depois e, imaginas? saio novamente na tua casa de banho, seco-me à pressa no nosso toalhão e tu nem deste por o cliente me ter chamado; aliás, tu não deste por nada.

Jogo-me pelo ares e já sinto o teu cheiro aqui em mim, tão próximo e intimo que já ninguém me encontra ou incomoda mais. Depois de fazermos amor, saímos de casa para ir comer caracóis e torradas com cerveja preta bem fresca.

Numa qualquer esplanada com vista para o oceano ilimitado a olho nú.

desaparecido-web

15 responses to “DESAPARECIDO

  1. ‘Tou com um sorriso como o do gato de Cheschire.
    Escreva mais, fotografe mais. É um pedido, mas devia ser uma ordem. A sério.
    :-)

  2. Sr. Torres, quanto me identifiquei eu com a tua escrita. Passo dia e meio nisso sentido falta de pessoas desconhecidas, fazendo amor ao mais simples toque. Está simplesmente Genial mano. Abraço

  3. Gostei da construção em caleidoscópio! Mas acho que este texto precisava de ser mais trabalhado. No fim de ler e reler fica um gostinho de atabalhoamento. O fio condutor, a volta à banheira, está bem escolhido.

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