Texto dividido em 5 partes.
O meu avô vive na memória dos que rodeiam aquele caixão e de outros que o vão chorar quando este aviso chegar certo e frio como a morte.
Consigo ouvir a chama das velas a mudar de direcção com a passagem do ar. Os lenços de papel perfumados saltam dos pacotes e aparam lágrimas e ranho. Os sapatos trazem areia da rua que arranha a tijoleira ocre enquanto aguardamos o sermão do padre e isto só acontece por que estamos vivos.
Olho para o avô Carlos ali deitado, mãos ao peito e algodão a sair-lhe do nariz. A avó Teresa beija-o na testa indiferente a esse pormenor. Para ela ainda é só um longo sono. Os comprimidos para os nervos turvam-lhe a razão e de autêntico só resta mesmo um longo beijo na testa. Quanto amor, quanta dor.
O Daniel, meu irmão mais velho, agarra-me a mão com força.
– Laura, – disse-me Daniel a soluçar – anda lá fora, por favor.
– Está bem. Aproveitamos para ir a casa da tia Clara. Tens de lavar essa cara e comer qualquer coisa. Vá, eu vou pedir-lhe a chave.
Na rua estva frio. Procurei aconchegar-me no braço do Daniel. A noite caiu. A ausência da Lua trouxe uma Via Láctea desenhada.
É assim que me recordo da Micucuru…
***
– Avô, a história hoje é sobre o quê? – disse Laura numa voz fina e doce enquanto se aproximou da varanda da sala de jantar.
O dedo de Carlos já apontava os corpos celestes. Para contar a história à neta trouxe uma cesta velha de verga que encontrou na arrecadação. Cheirava a mofo, tinha teia de aranha.
– Estou a ver se ela aparece e põe aqui os ovos.
– Ela quem? – perguntou a pequena Laura.
– A Micucuru! Quem havia de ser. – afirmou como se fosse óbvio.
– Micucuquê?
– Mi-cu-cu-ru…
Laura puxou um banquinho de madeira, olhou para o dedo do avô Carlos a apontar as estrelas e esperou:
– Nas noites sem Lua, a Micucuru larga os ovos no céu e eles deixam um rasto de luz até ficarem invisíveis. Espera…
Não tardou muito a rasgar o céu uma estrela cadente com uma cauda enorme e fosforescente.
– Viste, viste? – perguntou o avô entusiasmado. – Viste, amor? Traz o cesto, pode ser que tenhamos sorte!
Laura pegou no cesto e correu de uma ponta para outra da varanda. Ria à gargalhada enquanto caia uma e outra e outra.
– É difícil apanhar um ovinho, não é avô? – perguntou esperançada.
– É sim, amor.
O tempo foi passando: – Bem, está na hora da caminha! Deixa aqui a cesta. Está bem, querida?
Ofegante saltitou até ao quarto onde o avô Carlos a aconchegou na cama. Como sempre, um beijo na testa. Laura sonhou como seria a Micucuru. E os ovos? E os pintainhos de Micucuru? Ou seriam como os jacarés?
Na manhã seguinte foi até à varanda. No lugar da cesta velha estava uma cesta de seda, bordada a verga com um verniz brilhante e um coração cozido nas cores do arco-íris.
– Avô, avô, avô, avô!
A sua escrita é fabulosa. (Será esta a nova forma de fazer literatura? Em blogs…) Parabéns.
Bom dia Zé Rui,
não sei se é uma novidade, sei que me dedico todas as manhãs antes de ir trabalhar. Escrever no imediato. Pensar pouco, sentir muito. Talvez tenha uma Micucuru na cabeça. Bem, agora devo aspirar a casa, prometi à minha mulher.
O seu comentário é um abraço.
Obrigado Zé Rui, seja bem-vindo
Leio os teus textos não como tua companheira, amiga ou esposa mas como uma leitora atenta da tua escrita emotiva, viva de memórias, cheiros e cores. Cada parágrafo consegue-me arrancar um sorriso ao mesmo tempo que uma lágrima aparece…memórias do meu avô Carlos :)
Reblogged this on O Retiro do Sossego and commented:
Estas interrupções, deixam-me em pulgas para conhecer o resto da estória.
Concordo plenamente consigo!
Lindo :) Acho que todos temos uma Micucuru dentro de nós, esperando apenas pelo momento inesperado para saltar para fora e espalhar amor. Obrigado por estes breves momentos amigo. Abraço